ALMUDENA GRANDES
ESPECIAL PARA O "NEW YORK TIMES"
ESPECIAL PARA O "NEW YORK TIMES"
Nos anos 60 do século 20, a curiosidade era um vício perigoso para as crianças espanholas.
Crescemos entre fotografias -às vezes emolduradas sobre uma cômoda, às vezes escondidas numa gaveta- de pessoas jovens e sorridentes que não conhecíamos. Quem é? Eram tios ou noivos, primas ou irmãos, avôs ou amigas da família, e estavam mortos. Quando morreu? Faz muito tempo. Como foi, por que, o que aconteceu? Foi na guerra, ou depois da guerra, mas é uma história tão tenebrosa, é muito triste, é melhor não falar de assuntos desagradáveis.
Ali, naquele conflito misterioso do qual ninguém se atrevia a falar, embora ainda ardesse nos olhos dos adultos como uma ferida aberta, infectada pelo medo ou pela culpa, terminavam todas as conversas. Assim aprendemos a não perguntar muito antes de ler os terríveis e certeiros versos de Jaime Gil de Biedma: de todas as histórias da História, sem dúvida a mais triste é a da Espanha, porque termina mal.
Os espanhóis de hoje não gostam de se lembrar disso. Vivíamos em um país pobre, mas isso não era novidade.
Sempre tínhamos sido pobres, inclusive na época em que os reis da Espanha eram senhores do mundo, quando o ouro da América atravessava a península sem deixar em seu rastro mais que a poeira levantada pelas carroças que o levavam a Flandres, para saldar as dívidas da Coroa.
Na Madri de minha infância, onde um sobretudo era um luxo que não estava ao alcance das domésticas, nem dos trabalhadores diaristas que esperavam a hora de embarcar em um trem, a caminho da colheita de uvas francesas ou de uma fábrica alemã, a pobreza continuava sendo um destino familiar, a única herança que muitos pais podiam deixar para seus filhos.
Entretanto, nesse legado havia algo mais, uma riqueza que perdemos.
Olho para trás e me recordo de tudo, do frio, dos mendigos, dos silêncios, do nervosismo dos adultos quando cruzavam com um policial na calçada, de um costume antigo. Se um pedaço de pão caía ao chão, nos obrigavam a recolhê-lo e lhe dar um beijo antes de devolvê-lo à cesta de pão, porque houve muita fome em nossas casas quando morreram aquelas pessoas queridas de quem ninguém queria nos falar. Porém, por mais que eu me esforce, não me recordo da tristeza.
Da raiva, sim, dos maxilares cerrados, como que talhados em pedra, de alguns homens e mulheres que em uma só vida tinham acumulado tragédias suficientes para afundar-se seis vezes, mas que, não obstante, continuavam em pé. Porque na Espanha, até uns 30 anos atrás, os filhos herdavam a pobreza, mas também a dignidade de seus pais, uma maneira de ser pobre sem deixar de ser digno, sem deixar de lutar por seu futuro, sem nunca se dar por vencido.
Nem mesmo Franco, nos 36 anos de feroz ditadura que foram os frutos daquela guerra maldita, conseguiu evitar que seus inimigos prosperassem em condições atrozes, que se apaixonassem, que tivessem filhos, que fossem felizes. Na Espanha de minha infância, a felicidade era também uma maneira de resistir.
Depois nos disseram que era preciso continuar a esquecer. Que para construir a democracia era imprescindível olhar para frente, fazer como se nunca tivesse acontecido nada por aqui. E, ao esquecermos o ruim, também esquecemos o bom. Não parecia importante, porque de repente éramos bonitos, éramos modernos, estávamos na moda... Para quê recordar a guerra, a fome, centenas de milhares de mortos, tanta miséria?
Assim, renegando as mulheres sem sobretudo, as malas de papelão e os beijos no pão, perdemos os vínculos com nossa própria tradição, as referências que agora nos poderiam ajudar a superar esta nova pobreza que nos atacou de surpresa, vinda do coração dessa Europa que nos ia tornar ricos e que nos arrebatou um tesouro que não se compra com dinheiro.
Assim, nós, os espanhóis de hoje, mais que arruinados, estamos perdidos, abismados em uma confusão paralisante e inerme, desorientados como um menino mimado de quem tiraram os brinquedos e que não sabe protestar, reclamar o que era seu, denunciar o roubo, deter os ladrões.
Se nossos avôs nos vissem, primeiro morreriam de rir, depois morreriam de pena. Porque para eles isso não seria uma crise, mas um leve contratempo. Mas nós, que durante séculos soubemos ser pobres com dignidade, nunca soubemos ser dóceis.
Nunca, até agora.
A escritora espanhola Almudena Grandes publicou vários livros
sobre a Guerra Civil Espanhola. Um deles, "El Corazón Helado", foi
traduzido para vários idiomas, incluindo o inglês
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