20 de agosto de 2010

Nascer a dente de cachorro



Valter Alves de Oliveira Filho (*)

Estávamos todos lá, tomando assento no velho tapete de retalhos multicolorido, confeccionado a mão, cheio de detalhes que cobria alguns cortes no velho sofá marrom da sala de estar. Ao derredor os primos e primas que chegavam atrasados nos dias de sexta-feira, sempre às sete e meia da noite. Estes não se importavam em sentar-se nos tamboretes de madeira bruta. O importante eram as histórias que nos enchiam os olhos. As histórias da Vó Be eram as que mais prendiam a nossa atenção, quer fossem verídicas ou fictícias. Todos a conheciam pelo apelido, pois seu nome de batismo era pouco pronunciado até pelas próprias filhas e netos, e praticamente desconhecido mesmo dos vizinhos.

Vó Be era pernambucana, seu verdadeiro nome era Maria Ramalho Silva, uma anciã que mantinha uma “torda” de alimentos na feira livre de Santana do Ipanema (AL), desde os anos de 1960 até 82. Dona Be ficou conhecida de muitos ilustres e do povo em geral pela venda de tapiocas de coco ralado, acrescido de outros sabores. Como pernambucana, fazia questão de relembrar e divulgar um pouco dos seus saberes e da cultura do seu povo, os índios Fulni-ô. Dona Be nasceu na cidade de Águas Belas (PE) e migrou para o estado alagoano lá pelos idos de 1950.

Pelo convívio mais aproximado, eu, garoto traquino e cheio de curiosidades, buscava arrancar-lhe algumas palavras e expressões da sua língua nativa, o yaathê, do grupo lingüístico macro-jê, e que, com ressalvas, ela nos dizia que o orgulho dos Fulni-ôs, estava na preservação dos costumes e principalmente da língua como armas de defesa das futuras gerações. Confesso, naquela época não compreendia o porquê de tanto mistério envolvendo os dialetos e só recentemente viria descobrir as razões.

O yaathê é falado originalmente pela tribo Fulni-ô, tal qual fora a sua aquisição lingüística dos nossos antepassados. Hoje desperta a atenção de antropólogos e cientistas sociais, além de estudantes de diversas áreas das ciências humanas.

Uma expressão muito utilizada por indígenas e caboclos sempre me deixava inquieto, e foi numa dessas sextas-feiras de contos da Vó Be que a indaguei sobre o que significa “nascer a dente de cachorro?” (ou ser carregado a dente de cachorro?). Naquele momento, todos ficaram curiosos, atentos à resposta. Vó Be nos sorriu, tomou um gole do seu café, que ela própria havia torrado e pisado em um pilão de tronco de baraúna, e, após observar a tamanha curiosidade que tomara conta da sala, iniciou a história.

Conta-se que, em algumas tribos de costumes parecidos com os de língua de influencia macro-jê, como também os fulni-ôs, mantém seus rituais de purificação. As mulheres, ao engravidar, contam antes do parto com a assistência das anciãs indígenas e/ou do cacique da tribo; no entanto, era de costume as indígenas se retirarem para as reservas (mato) acompanhadas por um cachorro treinado, um animal tratado praticamente como um dos humanos. Quando a índia então paria, muitas das vezes o cão de caça transportava pela boca o curumim recém-nascido até a aldeia, para os devidos cuidados dos seus familiares. O curumim, mais novo membro da tribo, era saudado por todos como promessa de homem forte e valente, haja vista que já nascera enfrentando os obstáculos impostos pela mãe natureza. Vó Be dizia que essa seria uma das versões românticas que se dava àquela expressão, “a dente de cachorro”, usada muitas vezes como metáfora que possa expressar outras dificuldades e lutas do dia-a-dia.

Como era de praxe, ela sempre encerrava seus contos e causos encantadores com a frase: “Contei a minha história. Comecei no pé do pinto terminei no pé de pato, seu rei mandou dizer que contasse a quatro”. Todos nos dávamos por satisfeitos e sempre queríamos mais as histórias fantásticas da Vó Be.

Fragmentos: Tributo a Vó Be

(*)Valter Alves de Oliveira Filho: Professor, descendente do grupo indígena Fulni-ô, que ainda hoje habita as margens do médio rio Ipanema, junto aos limites do município de Águas Belas (PE). Colabora com esta nossa Agência Assaz Atroz.




Santana Oxente!








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Ilustração: AIPC - Atrocious International Piracy of Cartoons

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PressAA

Agência Assaz Atroz

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