Raul Longo
Foto: Jasmim Losso Arranz
Calma que o Toninho da Paraíba não é personagem de minha ficção e seus argumentos, aqui reproduzidos, demonstram como o programa Bolsa Família está prejudicando um importante e significativo segmento da história político/social brasileira, com profundas influências culturais, notadamente em nossa literatura.
Seja o leitor um entusiasta ou detrator do Bolsa Família, nos argumentos do Toninho encontrará maior substancialidade do que na condenação do programa porque o cunhado do primo da vizinha da cozinheira só colocou os meninos na escola para passar o dia enchendo a cara de cachaça.
Ainda vejo mais futuro do que se as crianças tivessem de trabalhar pra comprar a cachaça ou ficassem em casa assistindo a bebedeira, mas o Toninho da Paraíba, motorista do Parque da Aclimação tal qual o descreve um amigo meu, e adiante transcrevo, apresenta muito mais conteúdo a respeito do assunto, e vale a pena conferir. Asseguro maior consistência do que o condenar Henry Ford, porque tem gente que não respeita o sinal vermelho.
Os parágrafos preliminares se devem ao fato de este texto ser resposta à uma correspondente tucana, ainda que eleitora da Marina nas próximas eleições (uma tendência marcante que ainda não compreendi o motivo nem tenho coragem de perguntar).
Estranhei o nítido empenho da moça em bajular-me por dotes que sequer reconheço e, como informou pretender me visitar em próxima viagem a esta cidade, imaginei que pretenderia pouso e guarita a custos módicos. Maldade de minha parte e só a percebi ao final, quando reparo que à mensagem se anexara um PowerPoint sobre o qual a mensagem não se referia.
Abro o anexo, é um desses que tantas vezes já recebi – e provavelmente vocês todos – comparando o Bolsa Família com a ceva de caça de porco do mato. Uma bobagem enorme, mas que, apesar de apontar no Bolsa Família a implantação do comunismo, me espanta pela similaridade a argumentos de outros amigos que se requerem como comunistas.
Não trato do assunto com a moça, dedicando-me a demonstrar a inutilidade de seus esforços na tentativa de conquistar-me alguma consideração ao anexo no qual deve encontrar as mesmas proficiências que outros encontrariam se trocadas as palavras “comunismo” por “clientelismo”.
Como não encontrei no anexo o que justificasse mantê-lo aqui além de referências sublineares, reafirmo que o real interesse desta postagem é exclusivamente as impressões do taxista.
Wera:
Então a estarei aguardando, mas não se entusiasme tanto com isso de poço ou mar de cultura, não. Na verdade nem dou tanto valor assim à cultura, quanto a valorizam.
Não é que desvalorize aqueles que realmente a possuam, mas percebo que a maioria das pessoas constroem um grande mal entendido, confundindo duas coisas que não têm absolutamente nada a ver uma com a outra, no que se refere a interdependência entre si: cultura e inteligência.
Chegou-se a um tempo em que nossa obtusidade a respeito dos sentidos dessas palavras nós leva até a confundir inteligência com oportunismo. Lembro-me das muitas vezes em que ouvi apontar como muito inteligente um recordista mundial de besteiras e bobagens ditas em público: o Sílvio Santos. Quando me indignava com tamanho despropósito, explicavam como verdade inquestionável: “Se não fosse inteligente, não teria ganhado tanto dinheiro.”
Do primarismo de raciocínio do brasileiro médio, se concluiria que Albert Einstein nunca passou de um perfeito idiota por não ter reunido grande fortuna. Sócrates, não o jogador, o filósofo que o mundo inteiro considera o primeiro gênio da história da humanidade, no Brasil seria o mais imbecil dos seres humanos. Nasceu, viveu e morreu na pobreza.
Conheci muita gente bem mais culta do que eu, independente de serem mais pobres ou mais ricas. No meu entender, Wera, cultura, com o sentido de “o cabedal de conhecimentos, a ilustração, o saber de uma pessoa ou grupo social”, nada mais é do que coleção de conhecimentos. Algo mecânico. Se você ou qualquer outra pessoa ler todos os livros que li, terá a mesma cultura que tenho. Os que leram mais do que li, são mais cultos. Apenas isso.
Infelizmente nossa formação brasileira tem sido, ao longo de cinco séculos, das piores do mundo, só comparável a dos mais pobres e espoliados povos do hemisfério sul. Isso formou uma classe média medianamente informada, mas de idiotia arrematada e arrebatada, onde é comum nos acharmos o suprassumo da sabedoria, por termos lido esses ou aqueles autores consagrados lá na Europa.
O ridículo não é o que ignoramos, mas sim a prepotência de nos acharmos distintos, por todos os parâmetros observados, daqueles que, por dificuldades de sobrevivência, não tiveram condições de melhor se informar.
Arthur Schopenhauer, um dos mais importantes filósofos e sábios alemães, tem uma frase que nos cabe muito bem. Não vou lembrá-la exatamente, mas, em suma, ele afirmava que à gente simples e trabalhadora do povo é compreensível a ignorância, pois dedicam os momentos de suas vidas à obtenção de meios de sobrevivência. Mas que os indivíduos das classes privilegiadas que não se utilizam do ócio de que dispõem para alimentar seus espíritos, se assemelham ao gado. Ou aos porcos, se preferir.
Se um dia for ao Peru, um país muito mais pobre do que o nosso, e puder conviver com os poucos naturais peruanos de classe média e que tiveram acesso aos estudos, perceberá quanto são incomensuravelmente mais cultos e tem mais informações do próprio país e da história de seu povo, do que a média dos brasileiros formados em cursos superiores através de um sistema de ensino que sempre privilegiou uma elite em permanente estado de decadência.
Nossos cursos universitários, antes do PROUNI, sempre foram de acesso privilegiado às elites econômicas, no entanto a mais clara evidência de permanente decadência dessas elites e de seus aproximados da classe média, está exatamente nessa incapacidade de reconhecer no pobre, no marginalizado, nas faixas sociais sem oportunidades de evoluir para melhores condições de sobrevivência, a origem de todos os males que afetam a sociedade brasileira por inteiro.
Fomos um país pobre porque espoliados por potências estrangeiras? Sim. Fomos um país pobre porque nossos governos eram corruptos e apenas serviram como corretores de nossos potenciais, colocando-se a serviço de exploradores estrangeiros? Sim. Mas, sobretudo, fomos um país pobre porque nossas elites, ao contrário do que ocorre em sociedades desenvolvidas, ainda são incapazes de perceber que também são vítimas das doenças geradas na miserabilidade à que mantém a maioria do país. E essa nossa estupidez na condição de elites sociais escandaliza os olhos do mundo por tão tremenda incapacidade de percepção do quanto a miséria que nós mesmos produzimos nos contamina.
Aos olhos estrangeiros somos apenas os mais gordos, mas nem por isso menos porcos e exatamente por isso muito mais abjetos e nojentos do que a gente mais pobre do nosso povo.
Para qualquer lado de nossa história que se olhe, encontraremos profusos exemplos das razões dessa abjeção do mundo pela estúpida classe média brasileira. Me ocorre agora, no momento, a história de dois bairros paulistanos que, em verdade, é um só: Bexiga ou Bela Vista. Bela Vista era a parte alta, ocupada pelos casarões senhoriais próximos à Av. Paulista, de onde os barões do café descortinavam o centro da cidade e a baixada do vale do rio Anhangabaú. A baixada que desce daqueles altos à margem do rio também chamava-se Bela Vista, e ali os senhores do café e, mais tarde, industriais, alojaram seus empregados, então chamados “carcamanos”. Eram os italianos que vieram fugidos da miséria na Europa e, hoje, foram esquecidos por seus descendentes de classe média que imitam os mesmos preconceitos de que seus avós foram vítimas.
Pois com esse mesmo olhar preconceituoso que os descendentes da miséria europeia olham para os emigrantes nordestinos que atualmente ocupam aquela baixada, seus avós eram vigiados lá de cima, da Bela Vista dos paulistas quatrocentões. Quando a epidemia de varíola se alastrou por aqueles cortiços, os barões da Paulista solucionaram o problema designando aqueles baixios pelo nome popular da doença: Bexiga.
Evidente que a mudança do nome de parte do bairro não resolveu o problema, mas não foram os corpos de crianças e adultos nas calçadas que provocaram alguma emoção como, hoje, os mendigos amontoados sob os viadutos não emocionam os netos dos “carcamanos”. Naquela época, as elites paulistanas só se deram conta de que a varíola que grassava pela miséria de seus empregados seria um problema comum a todos, quando seus próprios filhos começaram a morrer da mesma bexiga. Por isso se canalizou o rio Anhangabaú, que se estendia do bairro de Pinheiros ao rio Tamanduateí, pelo leito onde hoje corre a Avenida 9 de Julho.
Mais do que bens materiais da falida elite do café, herdamos a estupidez agravada pela insensibilidade do individualismo consumista promovido pelos meios de comunicação. Para espanto da Europa de onde ascendemos e de qualquer civilização um pouco mais evoluída, não conseguimos perceber que se atingimos um dos maiores índices de violência da história da humanidade, com mais mortes diárias por arma de fogo do que em países em guerra como as da Ásia ou do Oriente Médio, se deve exatamente por promovermos e mantermos essa miséria.
O mundo inteiro percebe e comenta nossa injusta concentração de renda. Nós nos limitamos a chafurdar nossos focinhos no lamaçal de nossa ignorância e não enxergamos a realidade do abate como objetivo final de nossa engorda consumista.
Não somos capazes sequer de perceber que nossos filhos são vítimas evidentes dos miasmas da bexiga e achamos que basta construir mais e mais presídios para evitar o estupro de nossas filhas, o crack de nossos meninos, nosso sequestro, invalidez ou morte cotidiana por bala perdida. A cada assassínio, sequestro ou caso de meninos da classe média que se inutilizam pelas drogas, nos sensibilizamos e pedimos mais presídios e mais polícia.
E quando os presídios são tantos que os poderes públicos, incompetentes ou impotentes, não conseguem impedir que de dentro de um deles, de segurança máxima, uma facção do crime organizado, de uma das mais populosas cidades do mundo, capital do estado mais rico do país, mantenha suas atividades ilícitas, comandando sequestros, assaltos, assassinatos, tráfico de drogas e o que bem mais entender? [Acredita-se que elementos dessa natureza só conseguem atuar se contarem com a cobertura de agentes internos e externos, sejam bandidos à paisana ou fardados.]
Metade das chacinas que ocorreram em São Paulo nos últimos três anos, conforme reconhece a própria Secretária de Segurança do Estado, foi promovida pela polícia paulista, que entrega refém a sequestrador e abate os leitões da classe média na frente de seus pais.
E quando a demanda por mais e mais polícia é tanta que os poderes públicos, impotentes ou inconsequentes, não dão conta de selecionar e treinar agentes da repressão que irão matar nossos filhos em nossos portões de classe média?
Será que aí se acenderá alguma luz em nossa mentalidade tacanha e obscura? Medieval!
Não! Nem assim! Apesar da segurança pública nas cidades e nos estados ser uma responsabilidade dos governos dos estados, como o é em todo o mundo, somos beócios o suficiente para responsabilizar a quem não cabe tal responsabilidade. Poderá ser o governo federal, caso seja ocupado por alguém a quem nossos estúpidos preconceitos eleger como a raiz de todo o mal; tal qual na Idade Média, os preconceitos religiosos dos inquisidores destinavam às fogueiras as mulheres, para regozijo da imbecilidade dos burgos. Para a imbecilidade dos burgos brasileiros, pobres, negros e nordestinos, hoje, são os possuídos pelo demônio como antes foram as bruxas da Inquisição.
Mas há uma responsabilidade que, como em todo mundo, cabe sim ao governo federal. Sempre foi uma responsabilidade de todos os governos federais de qualquer lugar do mundo, embora, aqui no Brasil, nunca tenhamos protestado nem distribuído mensagens pelos correios reclamando por essa responsabilidade jamais assumida. A responsabilidade de tornar esse país real e socialmente democrático, com condições dignas de sobrevivência para todos, de todas as classes sociais, origens raciais, formações culturais e condições econômicas.
E é por essa nossa inércia, por essa nossa conivência com a irresponsabilidade política dos governos deste país, que éramos um dos países mais pobres e atrasados do mundo. E o mais abjeto e ignorado também.
Acontece, Wera, que nós da classe média brasileira somos tão primários que sempre nos limitamos a entender democracia como o movimento eleitoral pelo qual de quatro em quatro anos escolhemos se queremos um governante que fale português castiço e perfunctório como o de Jânio Quadros, ou um bonitinho filho das elites como Fernando Collor de Melo, ou alguém culto e poliglota como Fernando Henrique Cardoso.
O problema é que a cada um desses, os miasmas da moléstia da bexiga mais se alastrou até invadir as praias da zona sul do Rio de Janeiro. Não gostamos disso, não nos agrada a erupção das chagas da bexiga às nossas vistas. Mas quando, enfim, nossa história avança, e um governo federal resolve tomar uma atitude efetiva para conter o crescimento da miséria, desenvolvendo um programa que se notabiliza no resto do mundo e cuja eficiência vem sendo copiada na Alemanha, nos Estados Unidos, na Rússia, na Itália e em outros países do hemisfério norte e da Ásia, cheira-nos mal.
Claro! Não se dá perfumes aos porcos!
Mas, se a Bela Vista é a Bela Vista e o Bexiga é o Bexiga, pra que canalizar o Anhangabaú? Se a favela está no alto do morro, o que tenho a ver com a situação de risco dos barracos? Só não quero é que invadam minha Vieira Souto com um arrastão! Aí eu chamo a polícia e quero mais presídios!
Wera, conheci gente muito mais culta do que eu, mas totalmente inapta para dirigir a própria vida, gerir a própria família, carente de alguém que orientasse seus passos, gente paralisada pelo medo de errar. São pessoas que vivem como guias conduzidos por cegos.
Por outro lado, por onde analisarmos a História brasileira, encontraremos exemplos da estupidez de nossos preconceitos. Outro ao acaso e que nos é próximo, Cruz e Souza, que na França era ídolo de Mallarmé e Baudelaire, considerados responsáveis pelo maior movimento cultural da época em que viveram. Aqui nesta Santa Catarina viveu miseravelmente o brasileiro Cruz e Souza, embora Mallarmé e Baudelaire o declarassem como o verdadeiro mestre do movimento cultural que promoveram. No entanto, por ser negro, Cruz e Souza morreu no Rio de Janeiro e seu corpo foi transportado num vagão de carga, dentro de um caixote de tábuas podres, acompanhado apenas pela viúva.
De lá pra cá, em que mudamos? Onde deixamos de ser tão imbecis e incapazes de superar os preconceitos que nos tornam uma das elites mais atrasadas e mesquinhas do mundo? Uma vergonha para o sentido da palavra humanidade ou qualquer senso mínimo de humanismo?
De que me adianta tudo o que li, Wera, se não sou capaz de explicar aos meus amigos norte-americanos, aos meus amigos alemães, espanhóis, coreanos, japoneses, ingleses e de tantos países do mundo (se vier para cá você os conhecerá) a razão da estupidez dos brasileiros incapazes de perceber a importância do Programa Bolsa Família?
O que dizer a eles? Me dê uma sugestão, Wera! Dizer que seja pelo medo do comunismo? Qual, se nos últimos 8 anos o capitalismo brasileiro se fortaleceu como nunca e o mais importante conselho do mundo capitalista, o de Davos, criou uma condecoração só para homenagear Lula como Estadista Global? Nunca nenhum presidente brasileiro foi tão condecorado pelos principais países, instituições e governos capitalistas do mundo! Meus amigos iriam rir da minha cara!
Dizer que Lula é um “apedeuta”? Entre meus amigos estrangeiros há os que conhecem o português e sabem que apedeuto é um adjetivo de dois gêneros. Esses desprezariam o ridículo da prepotência de minha ignorância ao querer acusar a ignorância de outro, sem ao menos ter noção básica de nosso idioma.
O que dizer Wera? Como explicar? Me sugira, por favor! Me diga como justiçar que nossa classe média seja tão estúpida que não é capaz de ver que, assim como a bexiga da baixada do Vale Anhangabaú, a violência invade suas casas, tal qual a crise econômica invade as mais tradicionais e fortalecidas economias do hemisfério norte, as quais, hoje, reconhecem o Programa Bolsa Família como uma das principais razões da crise internacional não nos ter atingido além de um efeito marolinha?
Realmente, Wera, não tenho cultura e sequer inteligência para explicar, justificar, o tamanho da mesquinhez da classe média do segundo país que mais cresce economicamente no mundo, mantendo programas sociais exemplares e elogiados pelos analistas de todos os continentes, enquanto a grande maioria das nações amarga uma recessão sem comparativos em suas histórias.
Gostaria muito que você me ajudasse, mas um amigo inglês que acaba de me visitar relatou uma conversa com um motorista de táxi que ao menos servirá para demonstrar a todos estrangeiros que conheço, que nem todos brasileiros somos tão estúpidos e porcos de espírito como lhes parece.
Esse amigo, também estrangeiro – inglês, como disse – é diretor de marketing de tradicional seguradora paulistana e, como não gosta de dirigir em São Paulo, onde mora há muitos anos, diariamente usa o mesmo táxi que faz ponto próximo à sua casa, no Jardim da Aclimação. Ficou amigo do taxista, um paraibano chamado Antonio. Pois o Toninho Paraíba, como é conhecido lá no ponto da Aclimação, relatou ao amigo que anualmente visita sua cidade natal e as cercanias dos sertões de sua origem, onde tem encontrado, nos últimos anos, diversos comércios dos mais variados gêneros.
Observando tal fato e lembrando-se de que até uns 6 ou 8 anos atrás, em cada pequena cidade daquelas só havia uma casa de comércio, invariavelmente de propriedade direta ou indireta do maior latifundiário local, onde sempre se operavam preços escorchantes pela falta de concorrência; Toninho Paraíba chegou a uma conclusão lógica, denotando que sua inteligência independe da cultura formal que, de fato, não tem.
Visto que, através do Bolsa Família, mesmo aqueles excedentes do excesso de oferta de mão de obra barata, conseguem consumir o básico para manter a própria sobrevivência e dos filhos, o comércio local floresceu. Floresceu e provocou maior giro de dinheiro antes concentrado nas mãos dos coronéis. Com isso tem aumentado a oferta de trabalho, em parte absorvida pelo próprio comércio e em parte absorvida por pequenos agricultores que, igualmente beneficiados pelo giro de capital, agora conseguem investir em suas produções. Tendo a quem vender e como concorrer com o monopólio dos coronéis, esses pequenos produtores também propulsionam produções regionais que, em cadeia, colaboram com a produtividade do país como um todo.
Toninho Paraíba, que não tem muita cultura, mas é inteligente que só, concluiu daí a explicação da diminuição do fluxo de emigração de seus conterrâneos para São Paulo. Não sei se chegou a imaginar que isso diminuirá o inchamento das favelas e periferias do Sul Maravilha, mas concluir que, progressivamente o sucesso do programa diminuirá a violência das cidades do Sul Maravilha, é função nossa, da classe média deste Sul Maravilha. Afinal, não dá pra deixar todo o esforço de raciocínio só para a inteligência do coitado do Toninho. Aí já é abuso e muita preguiça! Depois não adianta reclamar do Alzheimer nem do Parkinson! O que não se usa ou deteriora ou atrofia!
Toninho não corre esse risco, porque foi capaz de perceber – veja você! – que não adiantará mais aquela lavagem que se atirava aos porcos para eleger os paus-mandado dos coronéis a cada eleição, pois não é mais por uma cestinha-básica às vésperas do pleito que o caboclo votará nesse ou naquele. Por mais pobre que seja, ninguém mais está confinado no chiqueiro das demagogias eleitoreiras para comer por alguns dias. Agora os currais eleitorais estão em baixa, porque tendo como sobreviver durante o ano todo desde que mantenha o comparecimento diário dos filhos na escola e o acompanhamento de saúde em dia, ninguém mais vai eleger aqueles que o explorarão por toda a vida como sempre fizeram desde que se proclamou a república neste país.
E isso de saúde, você sabe como é, sempre está atrelada à higiene. De forma, Wera, que queiramos enxergar a realidade ou não, uma coisa ou outra está mudando radicalmente nesse país: ou o lugar dos porcos, ou o da pocilga.
Claro que essas mudanças aborrecem muito aos coronéis das elites regionais e Toninho, que não é besta, já sentiu quanto eles têm-se incomodado com os salários de trabalhadores, que começam a deixar de se sujeitar às lavagem eleitoreiras, tampouco aos restos que lhes eram atirados apenas para continuarem vivos e trabalhando, da mesma forma que se engorda porcos para o abate. Hoje, os trabalhadores brasileiros exigem melhores salários, e, por mais que se crie propagandas e mensagens contra o Programa Bolsa família, não serão enganados por tais historinhas com as quais o Silvio Santos conseguia atrair otários ao Baú da Felicidade.
É mesmo de se esperar que, em contrapartida, a classe média sulista argumente que a solução é construir mais escolas, mas com a inteligência provinda da própria experiência de vida, Toninho sabe bem que essa é mais uma conversa pra porco dormir, pois nunca adiantou criar sala de aula pra criança com fome. Promessas de solução do problema da educação com construções de escolas, só serviram para financiamento de campanhas eleitorais pelas empreiteiras contratadas em vésperas de eleição, pois sequer tínhamos professores capacitados para ensinar nossas crianças, embora tivéssemos um professor da Sorbonne na presidência. Mas a Sorbonne é lá em Paris, e mais vale a inteligência de um Toninho Paraíba no Jardim da Aclimação do que um professor da Sorbonne que entregue de mão beijada ao estrangeiro o que de mais promissor poderá ter o futuro de todos os filhos de brasileiros de qualquer classe social: a reserva do Pré Sal. Concorda? Tem mais: aqueles privilegiados que se formavam com recursos próprios, também iam buscar oportunidade em terras estrangeiras.
Mas mesmo a construção de pocilgas disfarçadas de escolas, se tornou uma demagogia difícil de por em prática, pois ao longo dos últimos oito anos, independente de eleições, se têm libertado o povo desse país com a construção de 12 universidades e cerca de 120 escolas técnicas. O que há muitas décadas não se construía no Brasil. E quem está lhe dizendo isso não é nenhum PowerPoint apócrifo de algum covarde que, sem conhecê-la, se comunica com você como se estivesse se relacionando com um animal de curral que acredita em qualquer lavagem que lhe joguem como alimento de falsa informação.
Quem está afirmando isso sou eu, Raul Longo. Tenho nome e endereço em que aguarda sua visita para mostrar o belo pôr de sol do Sambaqui, além da confirmação dessas informações e do que foi deduzido pela inteligência do taxista Toninho da Paraíba, através do Google do meu computador. Caso você também tenha o Google ou qualquer outro programa de pesquisa de informações instalado no seu computador, nem precisará vir até aqui por isso, mas pelo pôr de sol, sim, vale a pena.
Só não espere essa tanta cultura da qual me imagina detentor. Para ser franco, sequer tenho a mesma inteligência do Toninho! Quando muito, o suficiente para não cair na conversa do ex-ministro da Saúde quando indicava como medida profilática à epidemia da H1N1, ou gripe suína, que “é só não chegar perto do nariz do porquinho”, como se Bexiga e Bela Vista fossem bairros diferentes.
De toda forma, querida, agradeço seus elogios a minha cultura que nem é tanta, mas, convenhamos, Werinha, cultura sem inteligência é mais ou menos como um soldado na guerra, armado até os dentes, mas que já sem as mãos para usar as armas ou sem os pés pra correr quando o bicho pegar novamente no front; ou mesmo como um “general pelado”, conforme observava uma índia velha argentina, avó do poeta Facundo Cabral.
Abraço grande!
_________________________
*Raul Longo é jornalista, escritor e poeta. Ponta do Sambaqui, 2886
Floripa/SC. Colabora com esta nossa Agência Assaz Atroz
Ilustração: AIPC - Atrocious International Piracy of Cartoons
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PressAA
Agência Assaz Atroz
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Foto: Jasmim Losso Arranz
Calma que o Toninho da Paraíba não é personagem de minha ficção e seus argumentos, aqui reproduzidos, demonstram como o programa Bolsa Família está prejudicando um importante e significativo segmento da história político/social brasileira, com profundas influências culturais, notadamente em nossa literatura.
Seja o leitor um entusiasta ou detrator do Bolsa Família, nos argumentos do Toninho encontrará maior substancialidade do que na condenação do programa porque o cunhado do primo da vizinha da cozinheira só colocou os meninos na escola para passar o dia enchendo a cara de cachaça.
Ainda vejo mais futuro do que se as crianças tivessem de trabalhar pra comprar a cachaça ou ficassem em casa assistindo a bebedeira, mas o Toninho da Paraíba, motorista do Parque da Aclimação tal qual o descreve um amigo meu, e adiante transcrevo, apresenta muito mais conteúdo a respeito do assunto, e vale a pena conferir. Asseguro maior consistência do que o condenar Henry Ford, porque tem gente que não respeita o sinal vermelho.
Os parágrafos preliminares se devem ao fato de este texto ser resposta à uma correspondente tucana, ainda que eleitora da Marina nas próximas eleições (uma tendência marcante que ainda não compreendi o motivo nem tenho coragem de perguntar).
Estranhei o nítido empenho da moça em bajular-me por dotes que sequer reconheço e, como informou pretender me visitar em próxima viagem a esta cidade, imaginei que pretenderia pouso e guarita a custos módicos. Maldade de minha parte e só a percebi ao final, quando reparo que à mensagem se anexara um PowerPoint sobre o qual a mensagem não se referia.
Abro o anexo, é um desses que tantas vezes já recebi – e provavelmente vocês todos – comparando o Bolsa Família com a ceva de caça de porco do mato. Uma bobagem enorme, mas que, apesar de apontar no Bolsa Família a implantação do comunismo, me espanta pela similaridade a argumentos de outros amigos que se requerem como comunistas.
Não trato do assunto com a moça, dedicando-me a demonstrar a inutilidade de seus esforços na tentativa de conquistar-me alguma consideração ao anexo no qual deve encontrar as mesmas proficiências que outros encontrariam se trocadas as palavras “comunismo” por “clientelismo”.
Como não encontrei no anexo o que justificasse mantê-lo aqui além de referências sublineares, reafirmo que o real interesse desta postagem é exclusivamente as impressões do taxista.
Wera:
Então a estarei aguardando, mas não se entusiasme tanto com isso de poço ou mar de cultura, não. Na verdade nem dou tanto valor assim à cultura, quanto a valorizam.
Não é que desvalorize aqueles que realmente a possuam, mas percebo que a maioria das pessoas constroem um grande mal entendido, confundindo duas coisas que não têm absolutamente nada a ver uma com a outra, no que se refere a interdependência entre si: cultura e inteligência.
Chegou-se a um tempo em que nossa obtusidade a respeito dos sentidos dessas palavras nós leva até a confundir inteligência com oportunismo. Lembro-me das muitas vezes em que ouvi apontar como muito inteligente um recordista mundial de besteiras e bobagens ditas em público: o Sílvio Santos. Quando me indignava com tamanho despropósito, explicavam como verdade inquestionável: “Se não fosse inteligente, não teria ganhado tanto dinheiro.”
Do primarismo de raciocínio do brasileiro médio, se concluiria que Albert Einstein nunca passou de um perfeito idiota por não ter reunido grande fortuna. Sócrates, não o jogador, o filósofo que o mundo inteiro considera o primeiro gênio da história da humanidade, no Brasil seria o mais imbecil dos seres humanos. Nasceu, viveu e morreu na pobreza.
Conheci muita gente bem mais culta do que eu, independente de serem mais pobres ou mais ricas. No meu entender, Wera, cultura, com o sentido de “o cabedal de conhecimentos, a ilustração, o saber de uma pessoa ou grupo social”, nada mais é do que coleção de conhecimentos. Algo mecânico. Se você ou qualquer outra pessoa ler todos os livros que li, terá a mesma cultura que tenho. Os que leram mais do que li, são mais cultos. Apenas isso.
Infelizmente nossa formação brasileira tem sido, ao longo de cinco séculos, das piores do mundo, só comparável a dos mais pobres e espoliados povos do hemisfério sul. Isso formou uma classe média medianamente informada, mas de idiotia arrematada e arrebatada, onde é comum nos acharmos o suprassumo da sabedoria, por termos lido esses ou aqueles autores consagrados lá na Europa.
O ridículo não é o que ignoramos, mas sim a prepotência de nos acharmos distintos, por todos os parâmetros observados, daqueles que, por dificuldades de sobrevivência, não tiveram condições de melhor se informar.
Arthur Schopenhauer, um dos mais importantes filósofos e sábios alemães, tem uma frase que nos cabe muito bem. Não vou lembrá-la exatamente, mas, em suma, ele afirmava que à gente simples e trabalhadora do povo é compreensível a ignorância, pois dedicam os momentos de suas vidas à obtenção de meios de sobrevivência. Mas que os indivíduos das classes privilegiadas que não se utilizam do ócio de que dispõem para alimentar seus espíritos, se assemelham ao gado. Ou aos porcos, se preferir.
Se um dia for ao Peru, um país muito mais pobre do que o nosso, e puder conviver com os poucos naturais peruanos de classe média e que tiveram acesso aos estudos, perceberá quanto são incomensuravelmente mais cultos e tem mais informações do próprio país e da história de seu povo, do que a média dos brasileiros formados em cursos superiores através de um sistema de ensino que sempre privilegiou uma elite em permanente estado de decadência.
Nossos cursos universitários, antes do PROUNI, sempre foram de acesso privilegiado às elites econômicas, no entanto a mais clara evidência de permanente decadência dessas elites e de seus aproximados da classe média, está exatamente nessa incapacidade de reconhecer no pobre, no marginalizado, nas faixas sociais sem oportunidades de evoluir para melhores condições de sobrevivência, a origem de todos os males que afetam a sociedade brasileira por inteiro.
Fomos um país pobre porque espoliados por potências estrangeiras? Sim. Fomos um país pobre porque nossos governos eram corruptos e apenas serviram como corretores de nossos potenciais, colocando-se a serviço de exploradores estrangeiros? Sim. Mas, sobretudo, fomos um país pobre porque nossas elites, ao contrário do que ocorre em sociedades desenvolvidas, ainda são incapazes de perceber que também são vítimas das doenças geradas na miserabilidade à que mantém a maioria do país. E essa nossa estupidez na condição de elites sociais escandaliza os olhos do mundo por tão tremenda incapacidade de percepção do quanto a miséria que nós mesmos produzimos nos contamina.
Aos olhos estrangeiros somos apenas os mais gordos, mas nem por isso menos porcos e exatamente por isso muito mais abjetos e nojentos do que a gente mais pobre do nosso povo.
Para qualquer lado de nossa história que se olhe, encontraremos profusos exemplos das razões dessa abjeção do mundo pela estúpida classe média brasileira. Me ocorre agora, no momento, a história de dois bairros paulistanos que, em verdade, é um só: Bexiga ou Bela Vista. Bela Vista era a parte alta, ocupada pelos casarões senhoriais próximos à Av. Paulista, de onde os barões do café descortinavam o centro da cidade e a baixada do vale do rio Anhangabaú. A baixada que desce daqueles altos à margem do rio também chamava-se Bela Vista, e ali os senhores do café e, mais tarde, industriais, alojaram seus empregados, então chamados “carcamanos”. Eram os italianos que vieram fugidos da miséria na Europa e, hoje, foram esquecidos por seus descendentes de classe média que imitam os mesmos preconceitos de que seus avós foram vítimas.
Pois com esse mesmo olhar preconceituoso que os descendentes da miséria europeia olham para os emigrantes nordestinos que atualmente ocupam aquela baixada, seus avós eram vigiados lá de cima, da Bela Vista dos paulistas quatrocentões. Quando a epidemia de varíola se alastrou por aqueles cortiços, os barões da Paulista solucionaram o problema designando aqueles baixios pelo nome popular da doença: Bexiga.
Evidente que a mudança do nome de parte do bairro não resolveu o problema, mas não foram os corpos de crianças e adultos nas calçadas que provocaram alguma emoção como, hoje, os mendigos amontoados sob os viadutos não emocionam os netos dos “carcamanos”. Naquela época, as elites paulistanas só se deram conta de que a varíola que grassava pela miséria de seus empregados seria um problema comum a todos, quando seus próprios filhos começaram a morrer da mesma bexiga. Por isso se canalizou o rio Anhangabaú, que se estendia do bairro de Pinheiros ao rio Tamanduateí, pelo leito onde hoje corre a Avenida 9 de Julho.
Mais do que bens materiais da falida elite do café, herdamos a estupidez agravada pela insensibilidade do individualismo consumista promovido pelos meios de comunicação. Para espanto da Europa de onde ascendemos e de qualquer civilização um pouco mais evoluída, não conseguimos perceber que se atingimos um dos maiores índices de violência da história da humanidade, com mais mortes diárias por arma de fogo do que em países em guerra como as da Ásia ou do Oriente Médio, se deve exatamente por promovermos e mantermos essa miséria.
O mundo inteiro percebe e comenta nossa injusta concentração de renda. Nós nos limitamos a chafurdar nossos focinhos no lamaçal de nossa ignorância e não enxergamos a realidade do abate como objetivo final de nossa engorda consumista.
Não somos capazes sequer de perceber que nossos filhos são vítimas evidentes dos miasmas da bexiga e achamos que basta construir mais e mais presídios para evitar o estupro de nossas filhas, o crack de nossos meninos, nosso sequestro, invalidez ou morte cotidiana por bala perdida. A cada assassínio, sequestro ou caso de meninos da classe média que se inutilizam pelas drogas, nos sensibilizamos e pedimos mais presídios e mais polícia.
E quando os presídios são tantos que os poderes públicos, incompetentes ou impotentes, não conseguem impedir que de dentro de um deles, de segurança máxima, uma facção do crime organizado, de uma das mais populosas cidades do mundo, capital do estado mais rico do país, mantenha suas atividades ilícitas, comandando sequestros, assaltos, assassinatos, tráfico de drogas e o que bem mais entender? [Acredita-se que elementos dessa natureza só conseguem atuar se contarem com a cobertura de agentes internos e externos, sejam bandidos à paisana ou fardados.]
Metade das chacinas que ocorreram em São Paulo nos últimos três anos, conforme reconhece a própria Secretária de Segurança do Estado, foi promovida pela polícia paulista, que entrega refém a sequestrador e abate os leitões da classe média na frente de seus pais.
E quando a demanda por mais e mais polícia é tanta que os poderes públicos, impotentes ou inconsequentes, não dão conta de selecionar e treinar agentes da repressão que irão matar nossos filhos em nossos portões de classe média?
Será que aí se acenderá alguma luz em nossa mentalidade tacanha e obscura? Medieval!
Não! Nem assim! Apesar da segurança pública nas cidades e nos estados ser uma responsabilidade dos governos dos estados, como o é em todo o mundo, somos beócios o suficiente para responsabilizar a quem não cabe tal responsabilidade. Poderá ser o governo federal, caso seja ocupado por alguém a quem nossos estúpidos preconceitos eleger como a raiz de todo o mal; tal qual na Idade Média, os preconceitos religiosos dos inquisidores destinavam às fogueiras as mulheres, para regozijo da imbecilidade dos burgos. Para a imbecilidade dos burgos brasileiros, pobres, negros e nordestinos, hoje, são os possuídos pelo demônio como antes foram as bruxas da Inquisição.
Mas há uma responsabilidade que, como em todo mundo, cabe sim ao governo federal. Sempre foi uma responsabilidade de todos os governos federais de qualquer lugar do mundo, embora, aqui no Brasil, nunca tenhamos protestado nem distribuído mensagens pelos correios reclamando por essa responsabilidade jamais assumida. A responsabilidade de tornar esse país real e socialmente democrático, com condições dignas de sobrevivência para todos, de todas as classes sociais, origens raciais, formações culturais e condições econômicas.
E é por essa nossa inércia, por essa nossa conivência com a irresponsabilidade política dos governos deste país, que éramos um dos países mais pobres e atrasados do mundo. E o mais abjeto e ignorado também.
Acontece, Wera, que nós da classe média brasileira somos tão primários que sempre nos limitamos a entender democracia como o movimento eleitoral pelo qual de quatro em quatro anos escolhemos se queremos um governante que fale português castiço e perfunctório como o de Jânio Quadros, ou um bonitinho filho das elites como Fernando Collor de Melo, ou alguém culto e poliglota como Fernando Henrique Cardoso.
O problema é que a cada um desses, os miasmas da moléstia da bexiga mais se alastrou até invadir as praias da zona sul do Rio de Janeiro. Não gostamos disso, não nos agrada a erupção das chagas da bexiga às nossas vistas. Mas quando, enfim, nossa história avança, e um governo federal resolve tomar uma atitude efetiva para conter o crescimento da miséria, desenvolvendo um programa que se notabiliza no resto do mundo e cuja eficiência vem sendo copiada na Alemanha, nos Estados Unidos, na Rússia, na Itália e em outros países do hemisfério norte e da Ásia, cheira-nos mal.
Claro! Não se dá perfumes aos porcos!
Mas, se a Bela Vista é a Bela Vista e o Bexiga é o Bexiga, pra que canalizar o Anhangabaú? Se a favela está no alto do morro, o que tenho a ver com a situação de risco dos barracos? Só não quero é que invadam minha Vieira Souto com um arrastão! Aí eu chamo a polícia e quero mais presídios!
Wera, conheci gente muito mais culta do que eu, mas totalmente inapta para dirigir a própria vida, gerir a própria família, carente de alguém que orientasse seus passos, gente paralisada pelo medo de errar. São pessoas que vivem como guias conduzidos por cegos.
Por outro lado, por onde analisarmos a História brasileira, encontraremos exemplos da estupidez de nossos preconceitos. Outro ao acaso e que nos é próximo, Cruz e Souza, que na França era ídolo de Mallarmé e Baudelaire, considerados responsáveis pelo maior movimento cultural da época em que viveram. Aqui nesta Santa Catarina viveu miseravelmente o brasileiro Cruz e Souza, embora Mallarmé e Baudelaire o declarassem como o verdadeiro mestre do movimento cultural que promoveram. No entanto, por ser negro, Cruz e Souza morreu no Rio de Janeiro e seu corpo foi transportado num vagão de carga, dentro de um caixote de tábuas podres, acompanhado apenas pela viúva.
De lá pra cá, em que mudamos? Onde deixamos de ser tão imbecis e incapazes de superar os preconceitos que nos tornam uma das elites mais atrasadas e mesquinhas do mundo? Uma vergonha para o sentido da palavra humanidade ou qualquer senso mínimo de humanismo?
De que me adianta tudo o que li, Wera, se não sou capaz de explicar aos meus amigos norte-americanos, aos meus amigos alemães, espanhóis, coreanos, japoneses, ingleses e de tantos países do mundo (se vier para cá você os conhecerá) a razão da estupidez dos brasileiros incapazes de perceber a importância do Programa Bolsa Família?
O que dizer a eles? Me dê uma sugestão, Wera! Dizer que seja pelo medo do comunismo? Qual, se nos últimos 8 anos o capitalismo brasileiro se fortaleceu como nunca e o mais importante conselho do mundo capitalista, o de Davos, criou uma condecoração só para homenagear Lula como Estadista Global? Nunca nenhum presidente brasileiro foi tão condecorado pelos principais países, instituições e governos capitalistas do mundo! Meus amigos iriam rir da minha cara!
Dizer que Lula é um “apedeuta”? Entre meus amigos estrangeiros há os que conhecem o português e sabem que apedeuto é um adjetivo de dois gêneros. Esses desprezariam o ridículo da prepotência de minha ignorância ao querer acusar a ignorância de outro, sem ao menos ter noção básica de nosso idioma.
O que dizer Wera? Como explicar? Me sugira, por favor! Me diga como justiçar que nossa classe média seja tão estúpida que não é capaz de ver que, assim como a bexiga da baixada do Vale Anhangabaú, a violência invade suas casas, tal qual a crise econômica invade as mais tradicionais e fortalecidas economias do hemisfério norte, as quais, hoje, reconhecem o Programa Bolsa Família como uma das principais razões da crise internacional não nos ter atingido além de um efeito marolinha?
Realmente, Wera, não tenho cultura e sequer inteligência para explicar, justificar, o tamanho da mesquinhez da classe média do segundo país que mais cresce economicamente no mundo, mantendo programas sociais exemplares e elogiados pelos analistas de todos os continentes, enquanto a grande maioria das nações amarga uma recessão sem comparativos em suas histórias.
Gostaria muito que você me ajudasse, mas um amigo inglês que acaba de me visitar relatou uma conversa com um motorista de táxi que ao menos servirá para demonstrar a todos estrangeiros que conheço, que nem todos brasileiros somos tão estúpidos e porcos de espírito como lhes parece.
Esse amigo, também estrangeiro – inglês, como disse – é diretor de marketing de tradicional seguradora paulistana e, como não gosta de dirigir em São Paulo, onde mora há muitos anos, diariamente usa o mesmo táxi que faz ponto próximo à sua casa, no Jardim da Aclimação. Ficou amigo do taxista, um paraibano chamado Antonio. Pois o Toninho Paraíba, como é conhecido lá no ponto da Aclimação, relatou ao amigo que anualmente visita sua cidade natal e as cercanias dos sertões de sua origem, onde tem encontrado, nos últimos anos, diversos comércios dos mais variados gêneros.
Observando tal fato e lembrando-se de que até uns 6 ou 8 anos atrás, em cada pequena cidade daquelas só havia uma casa de comércio, invariavelmente de propriedade direta ou indireta do maior latifundiário local, onde sempre se operavam preços escorchantes pela falta de concorrência; Toninho Paraíba chegou a uma conclusão lógica, denotando que sua inteligência independe da cultura formal que, de fato, não tem.
Visto que, através do Bolsa Família, mesmo aqueles excedentes do excesso de oferta de mão de obra barata, conseguem consumir o básico para manter a própria sobrevivência e dos filhos, o comércio local floresceu. Floresceu e provocou maior giro de dinheiro antes concentrado nas mãos dos coronéis. Com isso tem aumentado a oferta de trabalho, em parte absorvida pelo próprio comércio e em parte absorvida por pequenos agricultores que, igualmente beneficiados pelo giro de capital, agora conseguem investir em suas produções. Tendo a quem vender e como concorrer com o monopólio dos coronéis, esses pequenos produtores também propulsionam produções regionais que, em cadeia, colaboram com a produtividade do país como um todo.
Toninho Paraíba, que não tem muita cultura, mas é inteligente que só, concluiu daí a explicação da diminuição do fluxo de emigração de seus conterrâneos para São Paulo. Não sei se chegou a imaginar que isso diminuirá o inchamento das favelas e periferias do Sul Maravilha, mas concluir que, progressivamente o sucesso do programa diminuirá a violência das cidades do Sul Maravilha, é função nossa, da classe média deste Sul Maravilha. Afinal, não dá pra deixar todo o esforço de raciocínio só para a inteligência do coitado do Toninho. Aí já é abuso e muita preguiça! Depois não adianta reclamar do Alzheimer nem do Parkinson! O que não se usa ou deteriora ou atrofia!
Toninho não corre esse risco, porque foi capaz de perceber – veja você! – que não adiantará mais aquela lavagem que se atirava aos porcos para eleger os paus-mandado dos coronéis a cada eleição, pois não é mais por uma cestinha-básica às vésperas do pleito que o caboclo votará nesse ou naquele. Por mais pobre que seja, ninguém mais está confinado no chiqueiro das demagogias eleitoreiras para comer por alguns dias. Agora os currais eleitorais estão em baixa, porque tendo como sobreviver durante o ano todo desde que mantenha o comparecimento diário dos filhos na escola e o acompanhamento de saúde em dia, ninguém mais vai eleger aqueles que o explorarão por toda a vida como sempre fizeram desde que se proclamou a república neste país.
E isso de saúde, você sabe como é, sempre está atrelada à higiene. De forma, Wera, que queiramos enxergar a realidade ou não, uma coisa ou outra está mudando radicalmente nesse país: ou o lugar dos porcos, ou o da pocilga.
Claro que essas mudanças aborrecem muito aos coronéis das elites regionais e Toninho, que não é besta, já sentiu quanto eles têm-se incomodado com os salários de trabalhadores, que começam a deixar de se sujeitar às lavagem eleitoreiras, tampouco aos restos que lhes eram atirados apenas para continuarem vivos e trabalhando, da mesma forma que se engorda porcos para o abate. Hoje, os trabalhadores brasileiros exigem melhores salários, e, por mais que se crie propagandas e mensagens contra o Programa Bolsa família, não serão enganados por tais historinhas com as quais o Silvio Santos conseguia atrair otários ao Baú da Felicidade.
É mesmo de se esperar que, em contrapartida, a classe média sulista argumente que a solução é construir mais escolas, mas com a inteligência provinda da própria experiência de vida, Toninho sabe bem que essa é mais uma conversa pra porco dormir, pois nunca adiantou criar sala de aula pra criança com fome. Promessas de solução do problema da educação com construções de escolas, só serviram para financiamento de campanhas eleitorais pelas empreiteiras contratadas em vésperas de eleição, pois sequer tínhamos professores capacitados para ensinar nossas crianças, embora tivéssemos um professor da Sorbonne na presidência. Mas a Sorbonne é lá em Paris, e mais vale a inteligência de um Toninho Paraíba no Jardim da Aclimação do que um professor da Sorbonne que entregue de mão beijada ao estrangeiro o que de mais promissor poderá ter o futuro de todos os filhos de brasileiros de qualquer classe social: a reserva do Pré Sal. Concorda? Tem mais: aqueles privilegiados que se formavam com recursos próprios, também iam buscar oportunidade em terras estrangeiras.
Mas mesmo a construção de pocilgas disfarçadas de escolas, se tornou uma demagogia difícil de por em prática, pois ao longo dos últimos oito anos, independente de eleições, se têm libertado o povo desse país com a construção de 12 universidades e cerca de 120 escolas técnicas. O que há muitas décadas não se construía no Brasil. E quem está lhe dizendo isso não é nenhum PowerPoint apócrifo de algum covarde que, sem conhecê-la, se comunica com você como se estivesse se relacionando com um animal de curral que acredita em qualquer lavagem que lhe joguem como alimento de falsa informação.
Quem está afirmando isso sou eu, Raul Longo. Tenho nome e endereço em que aguarda sua visita para mostrar o belo pôr de sol do Sambaqui, além da confirmação dessas informações e do que foi deduzido pela inteligência do taxista Toninho da Paraíba, através do Google do meu computador. Caso você também tenha o Google ou qualquer outro programa de pesquisa de informações instalado no seu computador, nem precisará vir até aqui por isso, mas pelo pôr de sol, sim, vale a pena.
Só não espere essa tanta cultura da qual me imagina detentor. Para ser franco, sequer tenho a mesma inteligência do Toninho! Quando muito, o suficiente para não cair na conversa do ex-ministro da Saúde quando indicava como medida profilática à epidemia da H1N1, ou gripe suína, que “é só não chegar perto do nariz do porquinho”, como se Bexiga e Bela Vista fossem bairros diferentes.
De toda forma, querida, agradeço seus elogios a minha cultura que nem é tanta, mas, convenhamos, Werinha, cultura sem inteligência é mais ou menos como um soldado na guerra, armado até os dentes, mas que já sem as mãos para usar as armas ou sem os pés pra correr quando o bicho pegar novamente no front; ou mesmo como um “general pelado”, conforme observava uma índia velha argentina, avó do poeta Facundo Cabral.
Abraço grande!
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*Raul Longo é jornalista, escritor e poeta. Ponta do Sambaqui, 2886
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Ilustração: AIPC - Atrocious International Piracy of Cartoons
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