16 de outubro de 2012

O programa de Serra contra Serra


A 12 dias das urnas do 2º turno, e somente depois de escancarada a omissão, o tucano José Serra lançou seu programa de governo. O evento entre amigos, em uma livraria em SP, foi quase um programa de lazer tucano, uma encenação política para ser filmada e tapar o buraco mais corrosivo de uma propaganda eleitoral: a credibilidade.

Em meio ao contravapor das pesquisas, o tucano enfrenta um desgaste de fundo. Quanto mais se expõe, mais se configura o teor de uma trajetória em que as dissimulações se sucedem, como as cascas de uma cebola. 

Essa é a grande dificuldade dos seus marqueteiros: hoje o tucano compõe aos olhos da população um personagem cada vez mais desconectado de sua fala; as atitudes ecoam mais alto do que a voz e as promessas.

O acúmulo tende a consolidar uma imagem que se move de forma autônoma, à revelia do arsenal publicitário.

Mudar isso é como enxugar o chão com a torneira aberta.

Carrega-se na maquiagem aqui, arruma-se um beijo inverossímil ali. Em seguida, a realidade irrompe como um vento inoportuno a sabotar o controle do incêndio. 

O 'progressista', descobre-se mais adiante, teve atuação regressiva nas votações relativas ao direito do trabalhador, segundo levantamento do DIAP.

O 'desenvolvimentista', soube-se de fonte insuspeita, em 2010, foi um dos mais empenhados defensores das grandes privatizações do ciclo tucano, caso da Vale do Rio Doce, por exemplo. Testemunho: FHC.

O propalado 'condão administrativo' reduz-se a promessa de galinha velha: cacareja mas não bota. Juntos, Serra/Kassab completaram oito anos de um condomínio administrativo que objetivamente destratou SP; agora recolhe o saldo de uma rejeição estrondosa: 45% da cidade reprova a gestão consorciada. 

No episódio mais recente, do 'kit anti-homofóbico, esfarelam-se as credenciais do liberal, para emergir o oportunista da intolerância, que troca votos a qualquer preço.

Depois de alvejar a iniciativa do MEC, ao lado do consultor da candidatura para assuntos de gênero, Silas Malafaia, Serra foi obrigado a admitir, desmascarado mais uma vez: em 2009, quando governador, distribuiu material muito semelhante ao professorado estadual de SP.

A semelhança é compreensível: o material nos dois casos foi produzido pela mesma instituição, a ONG Ecos.

Palavras de um dos integrantes da equipe que participou do projeto: "A Ecos sempre trabalhou na gestão do Serra; ele está cuspindo no pote que comeu. O material que fizemos para o MEC tem 80% do material do Estado de São Paulo. É um absurdo se utilizar do preconceito para ganhar voto" (Toni Reis, presidente da ABGLT).

O evento tardio desta 2ª feira em torno do 'programa' para a cidade ressente-se desse vício congênito à natureza política de Serra: a simulação. 

O que se divulgou foi um adereço de mão da fantasia eleitoral com a qual pretende-se vender o falso como verossímil. 

Passa-se ao largo da oportunidade preciosa de exercitar a discussão democrática da cidade com os eleitores. 

Não há rigor técnico algum na rudimentar listagem tardia de propostas mal-ajambradas.O que é feito para não valer pode elidir metas, omitir cronogramas e abstrair custos.

Em resumo, prescindir dos requisitos que lhe dariam veracidade e transparência compatível com o acompanhamento democrático pela cidadania. 

O simulacro do conjunto foi resumido na descrição de um item por insuspeita fonte: "Em um dos poucos momentos em que dedicou sua fala às próprias propostas, Serra lembrou a promessa de construir 30 AMAs (Assistência Médica Ambulatorial)". (...) "Mas não a ponto de detalhar onde vamos fazer" (ressalvou o tucano). "Isso seria impossível (...). Mas tem o compromisso" (UOL, 16-10).

O modelar descompromisso se repete em outros tiros a esmo, como a menção a implantar mais '30 parques' na cidade; ou instalar mais cinco mil novos pontos de luz ou ainda a etérea menção a uma deficiência escandalosa na gestão de seu apadrinhado, que não dedicou a ela um centímetro adicional de asfalto: 'expandir a rede de corredores de ônibus'. Assim, em quatro palavras, desincumbe-se o tucano da grave distopia do transporte em São Paulo, como se fosse algo tangencial, passível de tratamento genérico e ligeiro. Vai por aí o seu crepuscular 'programa de governo'.

O conjunto exala o peso e a contundência de uma bolinha de papel eleitoral e corrobora a percepção que se calcifica rapidamente: Serra é o principal testemunho contra Serra. 

A postura professoral ancorada em boutades é quase ofensiva; a soberba incontrolável das sobrancelhas em pinça denuncia a impaciência de quem ouve por obrigação.

Quando tenta transparecer humildade, o tucano exala condescendência; o tom do discurso é sempre mais revelador do que o tema: ao tentar ser simpático é notório que está sendo falso.

O anti-sindicalismo udenista de Serra explode ao primeiro conflito, assim como o recorte antidemocrático irrompe à primeira pergunta de jornalista não embarcado na vassalagem midiática que o sustenta.

O higienismo social de sua visão sequer é dissimulado --e olha que estamos falando de um dissimulador experimentado. 

É difícil demover as consequências eleitorais dessa sedimentação ancorada na vivência cotidiana da cidade e na saturação com dissimulações rotas, convicções esfarrapadas e o vale tudo das conveniências.

São Paulo é o grande bunker logístico do conservadorismo brasileiro. 

A rejeição a um dos principais quadros desse aparato precisa acumular muito vapor na fornalha para romper uma blindagem arrematada com a solda dupla de um jornalismo cúmplice.

O maior trunfo de Haddad hoje é esse discernimento em curso na opinião pública: Serra é impermeável a qualquer valor ou compromisso que não atenda ao seu exclusivo interesse pessoal. No seu arquivo biográfico, o interesse da população ocupa uma prateleira subalterna. E essa hierarquia se reafirma na campanha municipal de 2012

por  por Saul Leblon  no site Carta Maior

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