do blog lucasassisdotorg
Nos últimos dias algo tem chamado atenção mídias afora: o “Movimento Gota D’Água” utiliza atores famosos para tratar de uma questão específica, a Usina de Belo Monte, somando argumentos sócio-ecológicos a uma crítica do elevado investimento do governo federal no empreendimento. É tudo muito bacaninha, com discursos decorados por profissionais na arte de parecer algo que não são- enfim, instrumentos perfeitos para a terceirização do embate político. Mesmo sendo uma cópia sem originalidade alguma de uma campanha norte-americana, considero o fenômeno interessantíssimo, já que elementos únicos de nossa realidade política trazem novo conteúdo ao formato de marketing já testado nos EUA. No Facebook, por exemplo, tenho visto pessoas que possuem muito pouco hábito de engajamento em questões sociais compartilhando os links dos vídeos, quase sempre com alguma frase em apoio, o que em uma democracia seria, a princípio, algo a ser sempre louvado. A partir dessa observação, algumas perguntas me surgiram: como uma questão que, de modo geral, estava em segundo plano na hierarquia de interesses da sociedade brasileira, foi alçada de maneira tão rápida ao status de prioridade no debate público? Podemos chamar isso de debate público ou é um fenômeno de outra natureza? Qual interesse por trás disso tudo? O objetivo deste texto não é oferecer respostas a essas perguntas, mas usá-las como ponto de partida para simplesmente pensar sobre o que está ocorrendo.
O intelectual americano Noam Chomsky em seu livro “Manufacturing Consent” defende que para entendermos a mídia de massa devemos analisá-la a partir da lógica da propaganda, isto é, seus discursos são pautados segundo interesses específicos privados e de governo no intuito de buscar apoio mais amplo da sociedade- em linguagem bem simples e direta: tais discursos querem “vender ideias e modos de vida”. O autor utiliza o conceito do cientista político Walter Lippmann, de “fabricação do consenso”, que seria uma transformação na forma de praticar a democracia: as elites empresariais e governamentais, aqueles que se consideram capazes de tomar as melhores decisões em nome do bem comum da sociedade, desenvolveram mecanismos de controle social, maneiras de direcionar a opinião pública, já que o cidadão médio não seria capaz de fazer as escolhas corretas. Para Lippmann, essas práticas, além de úteis e necessárias, são bem-sucedidas. Chomsky aponta a tensão entre essa forma de atuação e o ideal democrático de debate e participação políticos. Seria, para ele, um processo de privatização da esfera pública. Tais ideias de ambos os autores, principalmente da forma breve como as apresento, não devem soar como grande novidade para aqueles com certa dose de senso crítico.
Chomsky trabalha, sobretudo, o contexto norte-americano. No Brasil, essa dinâmica é ainda mais marcante, dado o nosso recente passado autoritário e o caráter feudal de nossa grande mídia, basicamente propriedade de quatro famílias, em que as credenciais de “empresário da comunicação” ou “respeitado jornalista” foram conquistadas a ferro, fogo e trocas de favores espúrios, sendo passadas de pai para filho como se fossem títulos de nobreza. As atuações dantescas da Rede Globo em diversos episódios políticos da nossa ainda breve experiência democrática talvez constituam a quintessência da prática da propaganda política conservadora, muito mal disfarçada de serviço jornalístico.
Falei em conservadorismo, entendido aqui como esforço pela manutenção do status quo, manutenção do poder nas mãos de seus tradicionais donos, que, no caso brasileiro, buscam o beneplácito de seus avalistas internacionais. O conservadorismo sempre foi, infalivelmente, o Norte ideológico da facção da qual fazem parte nossos grandes barões midiáticos. Após o conturbado século XX, fechado com a falsa vitória do projeto ideológico de que “não há mais ideologia”, surgem movimentos em diversos lugares do mundo que questionam o capitalismo tal como é praticado hoje. Em diálogo com esses movimentos, cada vez mais a “ideologia verde” se dissemina, ganhando legitimidade entre as elites e as classes médias de todo o mundo. Em um movimento que pode tardar, mas que termina por acontecer, o discurso correto para mobilizar – na verdade imobilizar- conseguiu ser articulado, nesse caso fazendo-se uso de instrumentos comprovadamente eficazes: atores famosos.
O “Cansei” e seus congêneres não conseguiram emplacar. A futura marca de campanhas publicitárias travestidas de movimentos sociais, a tal “Gota D’Água”, consegue passar simultaneamente a ideia de ultimato tão recorrente entre nossas elites frustradas por, entre outras coisas, não mais poder defender golpes militares abertamente- hoje se contentam com o uso violento dos fardados em favelas e reitorias ocupadas por “estudantes maconheiros”- com uma coisa moderninha e bacaninha, verde, cool, bonita como a Maitê Proença e a Letícia Sabatela. Se não fosse algo TÃO cool, e permitissem a presença de um político na área, certamente colocariam também o Gabeira pra “mandar uma letra pro pessoal”. Porém, política, como nos ensina diariamente a Globo, é algo nefasto, sujo e, no caso brasileiro, irremediavelmente corrupto. Dela precisamos nos afastar, nos aproximando somente pontualmente, sem perspectiva do contexto mais amplo. Volta e meia somos convocados por eles mesmos a ser massa de manobra em causas que, por motivos particulares, consideram relevantes.
O debate público no Brasil, mesmo que comprimido, entre outras coisas, pelo quase monopólio midiático, existe graças a esforços de uma minoria crítica e politicamente engajada. A terceirização desse embate é uma jogada muito inteligente de nossa grande mídia nativa, que aproveita ativos próprios valiosíssimos- a credibilidade de seus atores- lançando uma marca diferenciada no mercado do marketing político ao criar um arremedo de debate público, utilizando argumentos falaciosos e meias-verdades, sem chance ao teste do contra-argumento. Criando uma nova linha de frente, se poupam do desgaste do confronto direto.
Quanto custa o debate público hoje? Não temos como saber ao certo. Em uma pesquisa rápida, apesar de falarem nos custos da usina, não encontrei o valor do cachê dos tais atores/ativistas- imagino que se são ativistas de verdade, o fazem de graça, em nome de um ideal, certo? O link que nos direciona para o site que supostamente informaria mais, informa quase nada, mas tem trechos interessantes como esse que segue: “O Movimento Gota D’ Água surgiu da necessidade de transformar indignação em ação.Queremos mostrar que o bem é um bom negócio e envolver a sociedade brasileira na discussão de grandes causas que impactam o nosso país. Utilizamos nossa experiência em comunicação para dar voz aqueles que se dedicam a estudar o impacto que as decisões de hoje terão no amanhã. O Movimento apoia soluções inteligentes, responsáveis, conscientes e motivadas pelo bem comum. O Gota D’Água é uma ponte entre o corpo técnico das organizações dedicadas às causas socioambientais e os artistas ativistas.” – o negrito é meu.
Então, estamos abertamente falando de um balcão de negócios. O que está à venda? Ora, o produto político mais valioso em um sistema democrático: o consenso da sociedade sobre um determinado tema. Chomsky ao argumentar que precisamos observar a mídia de massas a partir do “modelo” da propaganda nos soa agora completamente ingênuo. A propaganda da “Gota D’Água” é veiculada no formato mais emblemático, com atores- poderiam ser atletas ou, no passado, heróis de guerra- defendendo as qualidades de um produto-ideia, e convocando sua clientela não às lojas, supermercados ou manifestações públicas, mas à algo muito mais simples: clicar em um link e assinar uma petição cujas demandas já estão previamente delineadas, cujo debate foi obliterado em um literal jogo de cena. Na última vez que acessei o site, havia mais de 800.000- quase um milhão- assinaturas em pouquíssimos dias de propaganda, uma demonstração de força e habilidade que prometem tornar a nova marca no setor de terceirização do embate midiático um negócio muito bem-sucedido. De minha parte, não fico surpreso com as intenções particularistas dos principais agentes, mas desanimado com a facilidade com que a maior parte das pessoas adere de forma acrítica, como presas fáceis, aceitando o papel menos valoroso que existe em uma democracia: ser massa de manobra.
1 comentário
É muito fácil conquistar simpatia com causas válidas. Ninguém questiona quem, como e porquê. É como as passeatas contra a corrupção. Todo mundo vai achando lindo, e mal sabe que quem organizou a passeata foi um político corrupto.
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